No dia 28 de outubro de 1930, Armando Ítalo Setti, filho do industrial Ítalo Setti, foi nomeado prefeito do antigo município de São Bernardo, pela Junta Governativa Revolucionária Provisória, órgão das forças militares que derrubaram o governo do presidente Washington Luís, na revolução de 3 de outubro de 1930 (1). Setti era dirigente local do Partido Democrático (PD) (2), força política paulista que se opunha ao situacionista Partido Republicano Paulista (PRP), o qual, na esfera local, era chefiado por Saladino Cardoso Franco, tradicionalmente ligado ao distrito de Santo André, e que ocupara o cargo de prefeito desde 1914 até sua destituição pela revolução.

Armando era também o correspondente regional do Diário Nacional, jornal oficial do PD, cuja sucursal funcionava, desde 1929, em sua residência, na Rua Marechal Deodoro (atual prédio nº 1737) (3). No PD, militavam Bortolo Basso, Francisco Miele, João Corazza, José Pelosini e José Zóboli, todos industriais da sede do antigo município (4), local cuja representação entre os vereadores havia sido pequena ao longo das duas décadas anteriores e desapareceu totalmente na legislatura eleita em 1928 .

Já em novembro de 1930, as relações entre o partido  ligado à classe média paulista e o governo revolucionário começaram a se deteriorar, devido à nomeação do militar pernambucano João Alberto Lins de Barros para o cargo de  interventor federal, o qual, naquele momento, era o posto de maior autoridade no estado.  Em abril de 1931,  o Partido Democrático  publicou um manifesto contra a interventoria de João Alberto.  Na ocasião, surgiu a notícia de que mais de uma centena  de  prefeitos ligados ao partido – incluindo Armando Setti -  pediram demissão de seus cargos em apoio ao manifesto (5).  Não há registros de que a demissão de Setti  tenha  sido  efetivada, mesmo que temporariamente, e, em junho do mesmo ano,  é certo que ocupava o cargo.  Na interventoria, em julho do mesmo ano, João Alberto foi substituído por Laudo de Camargo, que era  civil e paulista como desejava o PD, o que  contribuiu para amenizar as tensões provisoriamente (6).     

Em fevereiro de 1932, o PD e o PRP, antigos rivais, criaram a FUP – Frente Única Paulista, na qual se uniram em protesto contra a manutenção prolongada do governo “provisório” de Vargas, exigindo  a  convocação de eleições e a elaboração de uma constituição. Nos meses seguintes, mesmo com as ações e promessas de encaminhamento da redemocratização feitas pelo governo federal, os políticos do estado conspiravam. Em 23 de maio,  a morte de quatro jovens estudantes – Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo -  em uma  manifestação política que acabou em uma tentativa de invasão da sede do Partido Popular Paulista - organização tenentista que apoiava o regime -   inflamou ainda mais os ânimos dos paulistas.  Finalmente, em  9 de julho de 1932,   iniciou-se  a chamada “revolução constitucionalista”,  um levante armado do   Estado de São Paulo  contra o governo provisório de Getúlio Vargas ( 7).

Em São Bernardo, com o apoio do prefeito Armando Setti, mais de uma centena de munícipes se alistaram nos batalhões  de Voluntários “Floriano Peixoto” e “Paulistarum Terra Mater” , cujo nome indicava sua origem local (8). O industrial Narciso Pelosini pediu ao jornal  “A Gazeta”  a divulgação de uma carta na qual comunicava que garantia o emprego e o salário dos seus operários, caso  se alistassem para os combates em defesa de São Paulo(9). Na sede da “Sociedade Italiana” – próxima ao prédio da Câmara Municipal, na rua Marechal Deodoro – foi instalado o Hospital Auxiliar de Guerra, para socorro de combatentes feridos. Compunham a diretoria da entidade: Dorina Setti (presidente), Brasília Tondi de Lima (inspetora e esposa de Quirino de Lima), Iside Bonini (secretária) e Paulo Monte Serrat. Uma escola de enfermagem deveria funcionar no local sob a direção dos farmacêuticos  J.Migliano e Antônio de Castro. A inauguração do hospital ocorreu no dia 20 de setembro, contando com a presença do prefeito, de Raul Christol  – representante do Batalhão “Paulistarum Terra Mater” , e de Humberto Coppini, delegado local do M.M.D.C,  organização  estadual que estava entre as principais coordenadoras  da revolução, cujo nome fazia referência   aos estudantes mortos em 23 de maio (10).     

Com a derrota dos constitucionalistas, em outubro do mesmo ano, o Estado de São Paulo passou a ser governado pelo interventor militar Valdomiro Lima, o qual, no final de dezembro, exonerou Armando Setti e nomeou Estácio Pessoa como prefeito municipal (11).

O mais importante ato de promoção da memória da revolução constitucionalista em São Bernardo do Campo aconteceu em 1958, quando o bairro da  Pauliceia teve a maioria de suas ruas mais importantes  denominadas em referência ao evento histórico: Gen. Bertoldo Klinger e  Gen. Izidoro Dias Lopes, principais líderes militares do movimento;  Cásper Líbero – jornalista apoiador;   Miragaia, Martins, Dráuzio, Camargo e M.M.D.C,   estudantes  mártires  e da associação que lhes homenageava (12).

O acervo do Centro de Memória de São Bernardo do Campo mantém a guarda de importantes documentos relativos a esta época. Um deles é o depoimento de  Eurico de Azevedo Marques, um carioca radicado em São Bernardo, que se alistou entre os combatentes. Seguem alguns trechos de seu relato: “Todos aqueles que eram funcionários tinham a obrigação  de se apresentar para servir São Paulo. Santo André, São Caetano...  juntou tudo para receber farda, receber  instrução – quem não tinha – e seguir para o front (...). Na frente do Grupo Escolar (atual Praça Lauro Gomes), fizeram fileiras todos os que tinham vontade de ir.  Eu fui lá e me apresentei no lugar do meu pai. Eu tinha uma instrução de escoteiro, que era uma instrução militar. Eu completei 20 anos na trincheira. Em 9 de agosto, eu estava a 18 km para lá de São José de Guapiara, em patrulha e reconhecimento. A concentração das tropas era em Itapetininga. Fiquei (no front) os 3 meses da revolução. Depois viemos embora (...).Não tínhamos notícias de ninguém. Consegui telefonar para São Bernardo (...).  (Muitos) foram presos e levados para o Rio de Janeiro,  na Ilha  das Flores, entre eles estava o Sr. Quirino de Lima. Eram do comando geral da tropa e eles prenderam o comando geral inteiro (...)”  (13).     

Outros itens importantes  do acervo relativos ao tema são os três livros de registros do já mencionado Hospital Auxiliar e uma carta escrita pelo então soldado Quirino de Lima, pai do futuro prefeito Hygino de Lima, à sua esposa Brasília de Lima, a qual ilustra este texto e cuja transcrição segue abaixo (14):
 “Exma. Sra. Brasília T. de Lima;  Vila de São Bernardo.  Rua Américo Brasiliense, nº 3.  E. S. Paulo.  

Bury, 25 de outubro de 1932. Brasília e Filhos. Me acho nas trincheiras de onde escrevo. Estou passando bem com bastante coragem. Os oficiais são todos muito camaradas. Ainda não teremos combate. Mande-me notícias de vocês. Aceitem muitas saudades e peço transmitir à família e aos amigos. A você e filhos um apertado abraço. Recomende-me a Helena , Hygino e todos. Mande-me notícias daí. Do teu Quirino Baptista de Oliveira Lima, soldado nº 62, da 1º Companhia, 1º Pelotão Bury (...), Batalhão Floriano Peixoto “

 


Carta de Quirino de Lima. 1932.

 

 


Notas:
 

(1) - Cf. Prefeitura Municipal do Município de São Bernardo. Relatório apresentado ao Departamento de Administração Municipal  pelo Prefeito Armando I. Setti. 1932.p. 4.

(2) - Cf. Jornal Diário Nacional, 5/1/1930, p.15; 14/1/1930, p.11;  21/9/1928. p. 9  

(3) - Cf. Jornal Diário Nacional, 16/8/1929, p.2.

(4) - Cf. Jornal Diário Nacional , 8/5/1928. p. 9    

(5) - Cf.  Jornal “A Gazeta” , 8/4/1931.p.1.   e   Jornal do Brasil (25/4/1931 p. 8)

(6) - Cf.  Jornal “A Gazeta” , 13/6/1931.p.7; Ramos, Plínio de Abreu. Partido Democrático de São Paulo. Artigo disponível no sítio eletrônico do CPDOC. p.9.;  

(7) - Cf. Fausto, Boris. História do Brasil. p. 343 e 346;  Partido Popular Paulista. Verbete. Sítio eletrônico do CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação.

(8) - Cf. Jornal Diário Nacional,  9/9/1932;  Jornal “A Gazeta”,  13/7/1932.

(9) - Cf. Jornal “A Gazeta”,  13/7/1932,  p.1.

(10) - Cf. Jornal Diário Nacional. 20/9/1932. p1.

(11) - Cf. Jornal "Correio da Manhã". 30/12/1932. p 3. (2

(12) - Cf. Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo. Lei Municipal nº 624, de 25 de março de 1958.

(13) - Cf. Marques, Eurico de Azevedo. Depoimento. 13/5/1998. Banco de História Oral. Centro de Memória de São Bernardo do Campo.

(14) - A data da carta é posterior ao término do conflito. É possível que  tenha sido escrita na prisão, para onde Quirino foi levado após o término da revolução -  segundo o depoimento de Eurico Marques – e não na cidade de Bury, como informa a missiva, talvez em uma tentativa de ocultar a real situação do soldado, para tranquilizar a família.   

 

 

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