Entre as décadas de 20 e 30, o antigo município de São Bernardo – que englobava toda a atual região do grande ABC , e, entre as décadas de 40 e 70, os municípios de Santo André e São Bernardo do Campo, tiveram na figura de João Ramalho, liderança maior da vila quinhentista de Santo André da Borda do Campo, a principal referência nas expressões de sua memória social veiculadas pela imprensa e pelo poder público. Considerado, neste período, herói e pai fundador da região, o português nascido em Vouzela, no final do século XV, é, na verdade, um personagem histórico cuja vida é recheada de mistérios, conflitos e polêmicas. Ramalho chegou ao litoral paulista por volta do ano de 1512, em circunstâncias que, nunca esclarecidas, foram objeto de muitas discussões entre historiadores. Seria ele um náufrago ? Um degredado? Um viajante das primeiras expedições exploratórias e de defesa do litoral, enviadas ao Brasil pelo governo português? Sabe-se que, em 1532, quando Martim Afonso de Souza o encontrou, ele vivia entre o planalto e o litoral paulista, em estreita aliança com os índios tupiniquins, unido à filha do cacique Tibiriça, Bartira, com quem tinha muitos filhos. Em 8 de abril de 1553, por ordem do governador geral do Brasil, Tomé de Souza, o povoado reunido por Ramalho e seus descendentes, em algum ponto da atual região do grande ABC, foi transformado no primeiro município do planalto brasileiro, a vila de Santo André da Borda do Campo. Remontam à esta década de 1550, seus conflitos com os jesuítas, recém chegados à região. Em carta datada de 15 de Junho de 1553, o padre Manoel da Nóbrega assim descreveu Ramalho: “Toda a sua vida e a dos seus filhos é conforme a dos índios e é uma pedra de escândalo para nós, porque a sua vida é o principal estorvo para com a gentilidade que temos, por ele ser muito conhecido e muito aparentado com os Índios. Tem muitas mulheres. (...) vão à guerra com os índios e as suas festas são de índios e assim vivem andando nus como os mesmos índios ”¹. Na verdade a razão do conflito entre Ramalho e os jesuítas era que, enquanto os últimos procuravam cristianizar os nativos, afastando-os, sobretudo, de seus costumes guerreiros e das regulares festas antropofágicas associadas a tais hábitos, o primeiro chamava-os à guerra, obtendo, com isso, prisioneiros para o tráfico de escravos que existia no litoral paulista naquele momento e também para o trabalho, também escravo, junto aos colonos da região². O padre São José de Anchieta, em carta ao próprio Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, descreveu cenas chocantes ocorridas na região: “Alguns cristãos filhos de pai português e mãe brasílica, que estão apartados de nós 9 milhas numa povoação de portugueses, não cessam nunca de esforçar-se juntamente com o pai por lançar a terra a obra que procuramos edificar com a ajuda de Deus, pois exortam repetida e criminosamente os catecúmenos a apartarem-se de nós e a crerem neles, que usam arco e flechas como os índios (...). Os nossos irmãos tinham gasto quase um ano e meio a doutrinar uns, que distam de nós 90 milhas e eles, renunciando aos costumes gentílicos, tinham resolvido seguir os nossos e tinham-nos prometido nem matar nunca os inimigos nem comer carne humana. Agora porém, convencidos por estes cristãos (...) , preparam-se não só para os matar mas também para comer. Da guerra a que me referi acima, tendo um destes cristãos trazido um cativo, entregou-o a um irmão dele para o matar. E matou-o de fato (...) tomando o nome de quem matara em sinal de honra, como é costume entre os gentios; e, se o não comeu, deu-o ao menos a comer aos índios”³. Os conflitos dos portugueses e tupiniquins aliados de Tibiriçá com tribos inimigas – os chamados “contrários” – marcaram os sete anos de existência da vila de Santo André e perduraram mesmo após a sua população ser transferida para as cercanias do colégio jesuíta fundado em 1554 na região então conhecida como Piratininga, em episódio radicalmente ligado às origens do município de São Paulo. Em 1562, João Ramalho assumiu o cargo de capitão-mor da Vila de São Paulo de Piratininga e liderou a defesa dos paulistas contra a Confederação dos Tamoios. Alguns anos depois recusou o cargo de vereador em São Paulo por estar muito velho e vivendo “em terra dos contrários desta Vila (...) como degredado”(4). A data e as circunstâncias de sua morte também são indeterminadas. Nos séculos seguintes ao seu desaparecimento, João Ramalho não foi esquecido pelos cronistas que se debruçaram sobre a história de São Paulo. Em 1663, foi duramente retratado na “Crônica da Companhia de Jesus”, escrita pelo jesuíta Simão de Vasconcelos. No final do século XVIII, recebeu descrições positivas dos cronistas/historiadores Pedro Taques, o qual afirmou que Ramalho pertencia a nobreza portuguesa, e Frei Gaspar da Madre de Deus, que chegou a alegar que ele teria chegado ao Brasil em 1490, portanto antes da descoberta da América (5). Nas últimas décadas do século XIX e primeiros anos do século XX, vários debates acalorados aconteceram, envolvendo os institutos histórico-geográficos do Brasil e de São Paulo, apresentando discussões sobre o caráter, a religião – seria ele judeu? - e até o grau de instrução – seria analfabeto? - do patriarca paulista. A partir da década de 20, a visão positiva de Ramalho, como desbravador e civilizador, aparece na região do ABC em diversas expressões memorialísticas veiculadas pela imprensa, poder público e iniciativa privada. A partir do final dos anos 70, o passado quinhentista da região começou a ser ofuscado, pela maior divulgação de temas relacionados à sua história social mais recente, envolvendo as fazendas beneditinas, a criação da freguesia de São Bernardo (1812), a imigração européia (1877), etc. Neste movimento, também expressões negativas da figura de João Ramalho voltaram a aparecer. Imagens: À esquerda: o leão dos Ramalhos, em detalhe do brasão do antigo município de São Bernardo, idealizado pelo historiador Afonso d'Escragnolle Taunay e implementado em 1926, pelo prefeito Saladino Franco. Este mesmo brasão foi novamente instituído em 1952, pelo prefeito Lauro Gomes, para São Bernardo do Campo, e permanece vigente na atualidade, vinculando diretamente o município à figura de João Ramalho, À direita: Desenho de João Ramalho. Detalhe de publicidade da fabricante de automóveis Willys-Overland, veiculada pelo jornal “Gazeta de S. Bernardo”, em 18 de agosto de 1962. Um texto, abaixo do desenho, dizia “... produzimos veículos nacionais (...) que lembrarão nos recantos mais longínquos do Brasil, o grandioso sonho de progresso de João Ramalho”. Em comemoração ao aniversário da cidade, a empresa apresentava uma visão moderna, idealista e progressista de ramalho, muito pouco condizente com o que se sabe do personagem histórico real.
 

Notas:
1 – Cf. Carta de Manoel da Nóbrega ao padre Luís Gonçalves da Câmara. São Vicente. 15/06/ 1553. Serafim Leite. Novas Cartas Jesuíticas (De Nóbrega a Vieira).. p.46.
2 - Cf. Monteiro, John Manuel. Negros da terra - índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Cia. das Letras, 1994. p. 26-33.
3- Cf. Carta de José Anchieta ao Padre Inácio de Loyola. São Paulo de Piratininga. 1/09/ 1554.Serafim Leite. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. V. II (1553 - 1558). p.115.
4 - Cf. Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 15/02/1564.
5 – Cf. Neves, Cylaine Maria das. A Vila de São Paulo de Piratininga. Fundação e Representação. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007.p.211.

 

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