Depois da extinção da Vila de Santo André da Borda do Campo em 1560, o território onde hoje se localiza a região do Grande ABC paulista provavelmente permaneceu desabitado por algumas décadas. Apenas no final do século XVI se registra novamente a presença de moradores na área (1). Por exemplo, na localidade então conhecida como  Tijucuçu (hoje São Caetano ),  em 1598, habitava  uma família indígena escrava ( Antônio e Maria, junto a seus  filhos Joana, Isidoro, Mônica, Henrique e Matias), pertencentes ao casal Diogo Sanches e Isabel Félix, proprietários de um sítio na área. Nesta época, com a morte do casal,  os escravos foram vendidos, excetuando-se  apenas Mônica, a moça mais velha, que se tornou responsável por cuidar de Miguel, filho doente de Sanches. As terras foram herdadas pelo bandeirante  Jacques Félix, irmão de Isabel,  que posteriormente se ligaria ao surgimento da cidade de Taubaté (2).

De diversas maneiras, a memória de antiga Santo André ainda permaneceu viva durante o século XVII. Sabe-se que pelo menos um dos muitos descendentes de João Ramalho - o célebre líder da vila andreense – teve ligações com a  região. Trata-se de Mathias de Oliveira, seu neto, que obteve uma uma sesmaria em 24 de Dezembro de 1609 (3). Em 1633, em um documento relacionado à demarcação de terras, moradores da região apontavam a localização dos “ Pinhais que estão na Borda do Campo, nesta Vila Velha de Santo André” e citava-se um caminho “que os antigos moradores da dita Vila de Santo André usavam para ir à Piratininga (São Paulo)” (4). No ano de  1668, na descrição das terras cedidas a Francisco Velho de Morais, cujos limites seguiam  “ pelo ribeiro acima de Tamanduatii (provavelmente o atual Rio dos Meninos), de uma banda a outra até ponte que está no dito rio no caminho que vai até a capela de Santo André da borda do Campo”, a própria existência física da ermida da vila quinhentista é mencionada (5). O próprio  termo isolado “Borda do Campo”  permaneceu ligado à região, sendo referido em diversos documentos de ligados à posse e demarcação de terras: em 1615, há referência às “casas de morada da fazenda de  André Escudeiro ... na Borda do Campo” (6 ); em 1624, o inventário de Henrique da Cunha, cita “ seis mil réis de mantimentos na roça da Borda do Campo”, que o mesmo deixou aos órfãos Antônio, Francisco e Felipe (7); no ano de 1637,  Miguel Aires Maldonado, doou sesmaria que ficava “na Borda do Campo, aonde chamam Tamandatii” para os monges beneditinos que fundariam neste local, no século seguinte,  a fazenda S. Bernardo (8);  Ana de Alvarenga, em 1645,  “hipotecou um  curral de gado que tem na Borda do Campo à Manoel Fernandes Esteves (9); além destes, Lourenço Taques (1671),  Ana de Proença (1680), Manoel Fonseca Osório  (1682 ), também foram  registrados como proprietários na mesma área.

Embora os limites exatos da região então designada como Borda do Campo sejam incertos e possivelmente variáveis, sabe-se  que envolviam a área central da atual São Bernardo do Campo. Em 1656, o topônimo foi oficialmente usado para indicar  uma circunscrição administrativa do município de São Paulo – em cujo território estava incluso todo o território do atual Grande ABC -  quando o mencionado  Francisco Velho de Morais foi designado  como  capitão de ordenanças do “Bairro da Borda da Campo” (10).

Outro elemento da geografia da região citado com relativa freqüência na documentação da época  era o caminho que ligava Santos e São Paulo, que  atravessava a localidade, servindo, juntamente com os rios Pequeno e Grande, como importante via de transporte de pessoas e mercadorias entre o litoral e o interior da capitania. Em setembro de  1640, no contexto do conflito entre os  jesuítas e os proprietários de terras paulistanos, os últimos procuraram  impedir uma visita do visita do governador  da Capitania do Rio de Janeiro - Salvador Correia de Sá e Benevides - à Vila de São Paulo, através da criação de obstáculos – valas e paliçadas – na estrada do mar. Em 1647, em decorrência do mesmo litígio, o caminho foi novamente fechado (11).  Em  1661, segundos  as atas da Câmara de São Paulo, o governador da capitania, Jorge Fernandes da Fonseca, "havia mandado (re)fazer a Estrada do Mar de modo que possa andar carro por ela, cortando serras, indo em pessoa ver este benefício (...), donde se fizeram mais de setenta pontes”.

Em 1676, em todo seu território, o município de São Paulo  contava com cerca de 20  mil habitantes (12). Neste total estava inclusa a população que ocupava  o  atual território do grande ABC , a qual certamente não chegava à duas mil almas e possivelmente não atingia sequer um milhar. Não  havia ainda nenhum núcleo urbano nesta parte do município, de modo que  estes habitantes se dedicavam a atividades rurais e possivelmente ao transporte de mantimentos pela Estrada do Mar. Registros específicos sobre a vida social e econômica na área  são raros durante este século. Apesar disso,  alguns dados sobre a totalidade do município de São Paulo, provavelmente podem ser generalizados para a região, como o fato de que o trabalho escravo, sobretudo indígena  era muito comum nas fazendas.  Milho, farinha de mandioca e feijão eram  produtos básicos da agricultura por toda área. O trigo também era cultivado em São Paulo e em meados do século se tornou o item mais importante da agricultura paulista, sendo inclusive exportado para outras partes do país (13). No entanto, sabe-se que esta produção se concentrava em outros bairros do município, sem indícios de que a cultura tenha sido importante na região da Borda do Campo. Por outro lado, a criação de gado na área encontra algumas menções na documentação da época, como na caso do termo de arrematação das terras que foram de Manoel da Fonseca Osório, de 1682, que indica a presença de 64 cabeças de gado na propriedade (14). Segundo o pesquisador Wanderlei dos Santos, o inventário de Manoel refere-se a “ uns couros que tirou na Borda do Campo”, sendo possível que a produção de couro nesta propriedade tenha dado origem à denominação “Rio dos Couros” que, entre o início do século XVIII e meados do século XX, indicava o atual Rio dos Meninos, que ainda hoje existe, fluindo sob a Avenida Faria Lima, no centro da cidade (14).    

 

Mapa intitulado “Demonstração da Barra de Santos até a Cananéia”, produzido por João Albernaz,  no século XVII. No quadrante superior direito,  o mapa mostra a região da Vila de São Paulo, indicando, especificamente no território da atual São Bernardo  do Campo, o Rio Grande e o Rio Pequeno. Albernaz II, João Teixeira.  Brasil. In:Atlas do Brasil. 1666 (c. ). Atlas.  29 cartas desenhadas a tinta ferrogálica, col., aquareladas.  

          

 

Notas:

(1) - Cf. Martins, José de Souza . Índios e Negros  Escravos no ABC. In: Anais do 2º Congresso de História da Região do Grande ABC.  São Bernardo do Campo. PMSBC, 2000. p.32.

(2) - Cf. Martins, José de Souza. A  Escravidão em São Caetano (1598-1871). São Caetano, Centro Ecumênico de Documentação e Informação – e outros,  1988.  p.10.

(3) - Cf. Caldeira, João Netto. Álbum de São Bernardo. São Paulo: Organizações Cruzeiro do Sul, 1937 p. 91

(4) - Cf. Santos, Wanderley dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista (1550-1892). São Bernardo do Campo, PMSBC, 1992. p.22.

(5) - Cf. Ibidem. p. 23.

(6) - Cf. Ibidem. p. 58.

(7) - Cf. Ibidem. p. 59.

(8) - Cf. Ibidem. p. 59.

(9) - Cf. Ibidem. p. 61.

(10) - Cf. Ibidem. p. 47.

(11) - Cf. Menezes, Raimundo. Histórias da História de São Paulo. São Paulo:  Edições Melhoramentos, 1954.  p.48.

(12) - Morse, Richard. Formação Histórica de São Paulo –De comunidade à Metrópole. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.  p.37. Morse cita o estudo de  Sérgio Buarque de Hollanda, “Movimentos da população em São Paulo no século XVII”, publicado pela Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, em  1966 (p. 86).

(13) - Fausto, Boris fausto. História do Brasil .13ª Edição. São Paulo: Edusp, 2009.  ps. 94 e 97; Monteiro, John Manuel. Negros da terra – índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Cia. das Letras. 1994, ps.113 e  117 .

(14) - Cf. Santos, Wanderley dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista (1550-1892). São Bernardo do Campo, PMSBC, 1992. p.63.

 

 

Pesquisa, texto e acervo: Centro de Memória de São Bernardo

 

Alameda Glória, 197, Centro

Telefone: 4125-5577

E-mail: memoria.cultura@saobernardo.sp.gov.br

 

Veja esta e outras histórias da cidade no portal da Cultura:

https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/cultura/tbt-da-cultura