Na região da antiga Freguesia de São Bernardo, durante grande parte da 2a. metade do século XIX, houve um significativo crescimento do número de pessoas  que viviam  do transporte de cargas utilizando o carro de boi. Pode-se ter uma noção clara disso ao  comparar as profissões apontadas  nas listas de eleitores da região feitas em 1847 e em 1880 (1), apesar delas  trazerem uma amostragem apenas parcial da população,  mostrando somente os homens que possuíam a  renda anual necessária para serem eleitores:  em 1847,  havia 8 carreiros, 7% do total de eleitores; em 1880, o número havia crescido para 54 (41% do total). O desenvolvimento dessa atividade no período está ligado  sobretudo ao crescimento populacional  e adensamento urbana da capital, especialmente nos anos finais dos período, quando São Paulo saltou de 32 mil habitantes registrados no  censo de 1872 para 64 mil em 1890, mesmo com as antigas freguesias de Juqueri, Guarulhos e São Bernardo tendo se tornado município nesse intervalo de tempo. Em 1884, circulavam  pela capital 688 carros de boi de eixo móvel, 45% do total de veículos de carga (2); o restante era constituído por carroças de várias modalidades, guiadas por cavalo ou burros, aptos a cargas menores.

Com efeito,  por volta de 1880, a Capital se expandia  então principalmente em direção noroeste, onde desenvolvia-se a região de Santa Ifigênia e da recém loteada Chácara do Chá , futuro Bairro República.  Com o aumento das construções aumentava também a demanda por madeira, lenha e outros mantimentos que eram trazidos por carros de áreas dos arredores de São Paulo, onde ainda havia grandes porções de matas ainda virgens, como Santo Amaro e São Bernardo.

A atividade dos carreiros que transportavam madeiras foi, em 1857, bem descrita por um leitor anônimo do Jornal Correio Paulistano, ao explicar porque se opunha à  uma ideia de mudança do local da  feira de madeiras paulistana, que a pretendia deslocar do Largo Francisco para o chamado Pátio dos Curros (atual Praça da Republica, área então desabitada) (3): “Todas as principais obras se fazem no centro da cidade, por consequência o lugar de parada dos carros deve ser destinado de modo que o transporte seja cômodo e eis  o que não se verifica no Pátio dos Curros, pois é preciso os carreiros da estrada de  Santo Amaro irem dar lá  e daí virem  à cidade, Brás, ou Luz, e fazer a entrega da madeira que venderem. (...) Além disso, sendo quase sempre os mestres de obra os compradores das madeiras, vem as obras a sofrerem um grande atraso em prejuízo de seus donos, estabelecendo-se a feira tão longe da cidade e tendo de lá irem contratar as madeiras. (...) A mudança da feira é muito necessária, mas deve ser feita para um lugar no centro da cidade, de modo que fique ao alcance de todos. Julgamos que o lugar mais próprio é o Páteo de São Bento, por ser muito grande e pouco habitado, ficando no de São Gonçalo as madeiras que vem de São Bernardo e, no de São Bento, os que vêm de Santo Amaro, conservando-se dois lugares ótimos para o mercado.” No final das contas, a feira acabaria passando por vários lugares: indo para o Largo da Liberdade e depois passando pelo Largo do Riachuelo e Largo do Bexiga. Em 1877, atendendo a solicitação dos carreiros de São Bernardo, voltou parcialmente para o Largo da Liberdade  (4).

Além do  local de descarga, o barulho emitido pelo eixo dos  carros de boi também incomodava as autoridades. Em 1867, a câmara paulistana proibiu que os carreiros entrassem na zona urbana emitindo  ruídos - a chamada postura contra o “chio” dos carros. Os carreiros reagiram organizando um abaixo assinado com mais de cem adesões, onde se solicitava a suspensão da lei, mas não obtiveram sucesso. Para as autoridades, o barulho poderia ser facilmente evitado com o uso de “qualquer gordura ou matéria oleosa”  para lubrificar os eixos dos carros (5).

Em São Bernardo, havia carreiros espalhados pelos vários bairros rurais, com concentração especialmente na região dos Meninos/Borda do Campo (atuais bairros Rudge Ramos e Anchieta),  na divisa com São Paulo. Nela, entroncava-se as estradas Velha, do Vergueiro (que atravessava o centro da Freguesia em direção a Santos) e do Sacramento. Esta última  emendava-se com rotas oriundas das regiões do Curral Grande, Piraporinha, Alvarenga e Santo Amaro.

Nesta região dos Meninos e arredores, viveram famílias em que a ocupação como carreiros  atravessou gerações, como é o caso dos Oliveira, eventualmente identificados com o apelido de Piranga. Desde pelo menos meados do século XIX até o início do século passado existiram moradores com esse sobrenome nessas redondezas, distinguidos como  carreiros em documentos e outros registros (6).

Apesar da  persistência de algumas famílias, os carros de boi perderam rapidamente sua predominância como meio de transporte de cargas para o centro urbano na região da Grande São Paulo. Por um lado, o transporte de boa parte da lenha até o centro da Capital começou a ser feito por via férrea (tanto pela São Paulo Railway, como pela linha entre São Paulo e Santo Amaro, inaugurada em 1886), como atestou o observador Henrique Raffard em fins do Séc. XIX (7). Por outro lado,  após o surgimento de uma legislação especialmente contrária aos carros  de eixo móvel (carros de boi), devido aos danos que estes  causavam às vias e estradas públicas, outra grande parte da demanda por  transporte de mantimentos  foi absorvida inicialmente  pelas  carroças (mais leves e guiadas por cavalos ou burros) e ,depois, pelos caminhões motorizados. Estes, após 1910 começaram a se disseminar em escala progressivamente maior, ganhando em poucas décadas uma total predominância.

A preocupação com  os danos às vias públicas causados pelos carros de boi, já existente no século  XIX (8), se tornou latente no princípio do século XX,  quando as ruas  começaram a ser projetadas para veículos motorizados  modernos. Em 1904, o município de São Paulo  proibiu o trânsito dos carros de eixo móvel em 25 vias do centro (9). Nove anos depois, o número deste tipo de carro  registrado  naquele município já era muito mais baixo que o de carroças e o de caminhões: somente em um dia de janeiro de 1913, foram registrados pela inspetoria de fiscalização 118 carroças de diversas modalidades, 29 caminhões  e apenas 3 carros de boi (10). Em 1920, a  proibição a estes veículos foi estendida para todo o perímetro urbano daquele município e, em 1921, o governo paulista proibiu seu trânsito nas estradas de rodagem por ele conservadas (11), tais como  a Rodovia Caminho do Mar, antiga Estrada Velha de Santos, totalmente incorporada ao governo do estado em 1923. Tais proibições, inviabilizando o transporte de mercadorias com carros de boi  de lugares produtores, como São Bernardo, para o grande mercado consumidor paulistano,  associadas à progressiva disseminação dos caminhões, fariam com que os carreiros sumissem definitivamente dos caminhos e estradas da região da Grande São Paulo

Na imagem,   carro de boi carrega andor com imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem, durante a Procissão dos Carroceiros de 1987,

na altura da Praça Samuel Sabatini. 

 

 

Notas: 

(1) - Lista de eleitores da Freguesia de São Bernardo, 1847 e 1880. Arquivo Municipal Washington Luiz.
(2) - Correio Paulistano, 20-04-1884
(3) - idem, 02-09-1857
(4) - Atas da Câmara de São Paulo 14-07-1856, 14-03-1856,  21-09-1876, 08-03-1877
(5) - idem 02-04-1867; 19-11-1867.
(6) - Listas de eleitores 1857- 80 e Livro de Matrículas do Núcleo Colonial de São Bernardo 1895. Cf. também Médici, A. Coluna Memória in DGABC, 01-02-2015.
(7) - Raffard, H. Alguns dias na Pauliceia. 1977
(8) - Correio Paulistano, 03-04-1862, 15-08-1865
(9) - Lei PMSP 782 de 10-10-1904 .
(10) - Correio Paulistano, 19-01-1913
(11) - Lei PMSP 2264 de 13-02-1920
(12) - Lei Estadual 1835-C de 26-12-1921 e Correio Paulistano, 14-01-1920

 

 

Pesquisa, texto e acervo: Centro de Memória de São Bernardo

 

Alameda Glória, 197, Centro

Telefone: 4125-5577

E-mail: memoria.cultura@saobernardo.sp.gov.br

 

Veja esta e outras histórias da cidade no portal da Cultura:

https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/cultura/tbt-da-cultura