Nas primeiras décadas do século XX, o  território do atual município de São Bernardo do Campo era quase que completamente ocupado por matas e propriedades rurais. Sua  área urbanizada  era praticamente  restrita à Rua Marechal Deodoro, a qual, por sua vez, só possuía uma ocupação densa no trecho localizado entre a atual Av. Prestes Maia e a Rua Municipal. Com uma população inferior a 5 mil habitantes (1), composta, sobretudo, de imigrantes italianos e seus descendentes, geralmente com pouca educação formal e poucos recursos materiais, esta pequena área central era palco de uma vida cotidiana muito distinta da que encontramos atualmente no mesmo local, transformado pelo extraordinário crescimento demográfico, por novas realidades econômicas e por uma infinidade de tecnologias antes inexistentes. A documentação  produzida pelo poder público permite aos historiadores uma visão geral das estruturas sociais mais pronunciadas então existentes, mas passa longe de oferecer um quadro dos detalhes das práticas de vida e das mentalidades daquela comunidade, as quais, com muita freqüência, só encontram registros na memória de seus integrantes. Por isso são tão preciosos testemunhos como aquele deixado  por  Virgínia Corazza Ritucci, que foi gravado em 1990, pelo antigo Serviço de Documentação da História Local, - atual Centro de Memória de São Bernardo do Campo.
 
Nascida em Treviso, na Itália, Virgínia conta em seu depoimento que chegou ao Brasil em 1894,  aos 8 meses de idade, com o pai – Giovanni Corazza, a mãe – Giudeta Del Corso, e dois irmãos - Carlos e Frederico. Giovanni era irmão do comerciante italiano Antônio Corazza, que já  estava   estabelecido em São Bernardo desde 1886 (2), e cujos filhos estariam entre os pioneiros da indústria moveleira local na década de 1920. Segundo a depoente, a viagem de bebês com menos de um ano era proibida e por isso, não foi registrada com sua idade real nos documentos relativos à  viagem. No decorrer da vida, sua mãe acalentou o desejo de um dia retornar à Itália – onde a família ainda possuía um terreno, mas seu pai temia as guerras e os transtornos políticos no qual o país se envolveu. Sua  família se estabeleceu inicialmente com um moinho de fubá na antiga região da Ponte Alta –hoje Ferrazópolis - e mais tarde se mudou para o Centro (3). 
 
Virginia se recorda de uma Rua Marechal Deodoro sem energia elétrica, onde um dos  poucos funcionários da prefeitura era encarregado de apagar os lampiões dos postes às 21 horas: “Demorou para por a luz. Antes era tudo lampião. Quando era nove horas um homem vinha para apagar.E nas casas era lampiãozinho”(4). São memórias da década de 1900, pouco antes da instalação da primeira rede de energia elétrica pela empresa canadense São Paulo Light, Power & Tramway (5).
 
Poucos testemunhos chegaram até nós sobre a presença de ex-escravos no município e sua relação com o retante da população. Um deles veio de Virgínia,  e diz  respeito à década de 1910, quando o  casal Adão e “Nhá Eva”, vivia pelas redondezas: “Nhá Eva e Adão buscavam chá atrás da igreja para comer e vender. Eu lavei a roupa dela, quando ela ficou doente. Era gorda. Ninguém queria lavar a roupa dela (...). Eu peguei, tinha uma tina com sabão e pus lá (...). Depois ela ficou boa e foi morar em Santo André. O marido dela chamou  médico. Era uma  preta santa. Eu tinha 19 ou vinte anos.(...). O meu pai brigou comigo porque lavei (...) ninguém queria, tinham medo da Nhá Eva”(6) .
 
Circundada por um meio rústico e sem comodidades domésticas, a população da época vivia mais próxima das manifestações da natureza e à elas se adaptava.  O Rio dos Couros,  por cima do qual hoje passa a Avenida Faria Lima, ficava a metros dos quintais dos moradores:  “Todo mundo lavava roupa na beira do rio (...). Tinha o lavador. Cada um tinha o seu. Ficava lá. Tinha que por bem alto, porque se não, quando vinha enchente,  a água levava embora (...).As  pessoas pescavam no rio, pegavam traíra, camarão .,.”(7).
 
Em 1915,  Virginia  se casou com André Ritucci, filho do comerciante italiano Caetano Ritucci, que desde 1904 possuía uma venda ( 8 )  em um casarão alugado, defronte ao Largo da Matriz, onde hoje está o Banco Santander. Neste mesmo ano, Caetano adquiriu de Angelo Miele o imóvel da esquina oposta, onde hoje está o nº 1087 da Rua Marechal Deodoro (9) . Neste local, a família manteve por cerca de vinte anos, um dos principais armazéns de secos e molhados da cidade (10). Ali   eram vendidos  desde bebidas e alimentos sólidos – que correspondiam os ditos “molhados” - até louças, ferragens, ferramentas e outros utensílios domésticos  – os “secos”. Como era comum acontecer entre os comerciantes da rua nesta época, parte da família de Ritucci, incluindo André e Virgínia, residiam e trabalhavam no mesmo espaço, em cômodos anexos.
 
Virgínia dizia que“ a vida era apertada”:“Eu fazia pão, fornada de pão e engarrafava vinho ( para venda no armazém). Teci muito assento de cadeira de noite para por minha filha no Colégio S. José. Fazia a janta, arrumava a cozinha, deitava as pequenas e fazia assentos até meia noite (...) para o Pelosini (fábrica de móveis próxima). Todo mundo empalhava. Enchia a sala... ficavam sete, oito (trabalhando). Eu fazia dois assentos por noite (...)”(11).
 
Quanto à alimentação, a Sra. Ritucci Corazza relatou que incluía  ovos, carne de frango  e que“ carne da vaca nós comíamos só no domingo (...). Lá na Ponte Alta, nós tínhamos  cabras e um bode. Tomávamos leite de cabra com polenta. E pão... mas quando acabava era só polenta. Vinho tomava quando tinha (...).  Era  polenta, radiche e um fiapinho de queijo, quando estávamos um pouco ruim na vida e não tinha serviço nem para  o meu pai e nem para os meus irmãos” (12).
 
As filhas mais novas de Virgínia, as gêmeas Assunta e Conceição, nascidas em 1925, participaram da tomada do  depoimento. Uma delas lembrou da época em que todas as ruas da cidade eram de terra, com exceção da Rua Marechal Deodoro, que  recebeu  seu primeiro calçamento em 1933, sendo seguida pela Santa Filomena:“Eu me lembro que quando eu me casei e vim morar aqui na Santa Filomena, a rua  ainda era  de terra, em 1945. Não tinha calçada, nada. O esgoto corria na rua. Água e esgoto só na Marechal. As casas tinham poços”. Segundo Virginia,  na Rua Marechal Deodoro “passavam muitas carroças vendendo   carvão e lenha”(13). Provavelmente ela se refere às décadas de 1900 e 1910, antes da inauguração da Rodovia Caminho Mar, que incluía a rua como um de seus trechos e nela  instaurou o tráfego de automóveis. Nesta época a produção de carvão e lenha para venda em São Paulo era uma das principais atividades econômicas dos moradores da zona rural.   
 
A forte presença italiana na região centro também foi recordada:“Todo mundo falava italiano (...)  brasileiro tinha muito pouca gente, quase tudo italiano (...).  Tinha o Chico Caridade. Ele fazia corridas de cavalo lá no Cemitério. Era um homem rico.”(14). Aqui Virgínia se refere à Francisco Antônio de Oliveira Caridade, um brasileiro que tinha propriedade no final da Rua Marechal Deodoro entre 1900 e 1923 (15). O cemitério em cujas proximidade ocorriam corridas de cavalo era o atual Cemitério Municipal, na Vila Euclides.
Assim como a maior parte da população, Virgínia tinha uma forte relação com a religião católica: “Eu cantava  na Igreja, no coral, junto com Hermínia Miele, Pedro Miele,  Chico Miele, Atílio Miele (...). O médico ia me operar da úlcera (...). Eu disse que Nossa Senhora da Penha há de me ajudar em todos os pontos. Fiz muito jejum. Fiquei seca como um bacalhau, Disse que não ia operar de jeito nenhum. Fiz uma promessa para nossa Senhora da Penha que até hoje está me ajudando. Eu tomei os remédios e quando fui lá ver eu não tinha mais nada. Depois eu fui cumprir minha promessa lá na Igreja Nossa Senhora da Penha. Acendi uma vela, deu uma esmolinha e acabou” (16 ).
 
Após a morte de Caetano, em 1937, a propriedade da família na esquina do armazém foi vendida para Luiz Angeli, que, na segunda metade da década de 1954,  fez construir  no local o prédio que ali está atualmente.  André, Virgínia e seus filhos, foram residir ao lado, No imóvel de  número 1053 (17).   
 
 
Acima: Virgínia Corazza e André Ritucci. 1915. Abaixo: Armazém de Caetano Ritucci, que  aparece ao centro, ao lado da
esposa Maria Mascotto e do filho André. Originais: Família Ritucci.
 
 
 
Notas:
 
(1) - Cf.   Estado de São Paulo. Secretaria dos Negócios da Agricultura, Industria e Comércio. Secretaria dos Negócios da Educação e Saúde Pública. Comissão Geral do Recenseamento.Recenseamento Demográfico, Escolar e Agrícola Zootécnico do Estado de São Paulo – 1934. Imprensa Oficial, 1936. p.44.
(2) - Cf. Livro de Matrícula dos Colonos – Núcleo Colonial de São Bernardo/Sede. Inspetoria Geral de Terras, Colonização, Imigração do Estado de São Paulo. (1877/1892). Acervo: Arquivo do Estado de São Paulo.
(3) - Cf . Ritucci, Virgínia Corazza.   Depoimento. 30/10/1990. Banco de História Oral.
(4) - Cf. Ibidem.
(5) - Cf. Jacobine, Jorge H. Scopel. A Usina Henry Borden, a Represa Billings, e a história da eletricidade em São Paulo. 2023. Texto publicado no Portal da Secretaria de Cultura.
(6) - Cf . Ritucci, Virgínia Corazza. Idem.
(7) - Cf.   Ibidem.
(8) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Indústrias e Profissões. 1904-1909.  Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa.
(9) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Imposto Predial e Viação. (1904-1923).p.35.
(10) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Impostos de Indústrias e Profissões.  1911-1923. Acervo: Centro de Memória de São Bernardo do Campo;  Câmara Municipal de São Bernardo. Impostos de Indústrias e Profissões.1924-1935 Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano  Armando Gaiarsa.
(11) - Cf.  Ritucci, Virgínia Corazza. Idem. 
(12) - Cf. Ibidem.
(13) - Cf. Ibidem.
(14) - Cf. Ibidem.
(15) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Imposto Predial e Viação. (1904-1923).
(16) - Cf.  Ritucci, Virgínia Corazza. Idem. 
(17) - Cf. Ibidem.
 
 
 

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