Técnicas e saberes pertinentes à indústria metalúrgica são conhecidos há vários milênios pela humanidade. Desde a Idade Antiga, a profissão do ferreiro tem existido em centros urbanos, sendo fundamental para a produção dos mais diversos artefatos, alguns de grande importância para o modo de vida das civilizações tradicionais. Usando técnicas de forjaria - que envolvem o aquecimento e a deformação mecânica de metais para fabricação de objetos - os antigos ferreiros produziam pregos, martelos, machados, enxadas, foices, serras, armas, ferraduras, trancas, etc (1).
Na São Paulo colonial os ferreiros e latoeiros também eram figuras constantes na paisagem urbana, com tendas abertas às portas de suas moradias (2). Mesmo nos arredores rurais da capital era possível encontrar, entre o final do século XVIII e o início do XIX, alguns moradores que exerciam esta atividade. Na antiga Freguesia de São Bernardo, o primeiro ferreiro a receber registro foi um certo Francisco de S. , que em 1798, tinha 27 anos, era casado e pai de 5 crianças (3). Exerceu o ofício, no mínimo, até 1802. Em 1813, José Jerônimo, um senhor de 69 anos, era o único ferreiro mencionado no recenseamento da região (4). Quase uma década depois, em 1822, existiam 3 chefes de família, todos livres e sem escravos, exercendo a atividade no local: Manoel José, preto, 44 anos; Ignácio Fernandes, branco, 36 anos; Manoel José Joaquim José Lourenço, mulato, 29 anos. Os mesmos profissionais também foram registrados em 1827 e 1829 (5). A Freguesia de S. Bernardo abrangia o território da atual região do Grande ABC, de modo que não é possível saber com maior precisão o local em que estes artesãos estavam estabelecidos.
No último quartel do século XIX, época da imigração européia para o Núcleo Colonial São Bernardo. voltam a aparecer documentos com informações sobre os ferreiros da região. Estabelecidos na área central da atual São Bernardo do Campo, na década de 1880 já atuavam Claudio Sbrighi e os alemães Carlos Prugner e Wenceslau Richter (6) .
Prugner era um dos lideres da comunidade de migrantes, e por isso suas atividades estão melhor registradas. Sabe-se que comprava carvão vegetal de outros colonos para uso no seu estabelecimento (7) - a utilização de fornos alimentados por carvão era comum entre os ferreiros - e que fabricava facões, moldes, foices e machados (8). Manteve tenda relativa ao ofício até 1892, na esquina da Rua Dr. Fláquer com a Rua Marechal Deodoro (9). Prugner foi também vereador, fabricante de cerveja, padeiro, e proprietário de um cinema.
Wenceslau Richter exerceu o ofício até 1906 (10). Vivia com a família na linha “São Bernardo Novo” do núcleo colonial, na região do atual Bairro Santa Terezinha (11). Sua oficina ficava, aproximadamente, onde hoje está o prédio de nº 1613 da Rua Marechal Deodoro (12). Na mesma rua, Claudio Sbrigui exerceu o ofício até por volta de 1900 (13).
Nas décadas de 1890 e 1900, ainda no mesmo contexto do Núcleo Colonial S. Bernardo, surgiram diversos ferreiros de atuação relativamente efêmera: Stanislaw Gukowsky, imigrante russo, na Linha colonial do Rio Pequeno – atual Riacho Grande, em 1897; Antônio e Vicente Neuranter, austríacos, no centro, em 1897; Carlos Ellert, entre 1895 e 1900, na linha Capivary (atual Riacho Grande); João Korvat, em 1895, também na região do Capivary; Vicenzo Zanin, no centro, entre 1890-1891; Giuseppe Pasin, entre 1894-1896, defronte ao local onde, muito anos depois, ele iria inaugurar um dos primeiros cinemas da cidade, o Enrico Caruso – rebatizado S. Bernardo na década de 1930; Nicole Modesti, também no centro, entre 1896-1900; Luigi Bonini, esteve em atividade entre 1907 e 1910, nas proximidades do cruzamento da atual Av. Rotary com a Rua Marechal Deodoro, onde possuía também uma casa comercial; e etc (14) .
A mesma época testemunhou também a trajetória mais longa de alguns profissionais: Guilherme Bellinghausen, alemão, por cerca de 15 anos manteve oficina de carpinteiro e ferreiro, na esquina da Rua Marechal Deodoro com Dr. Fláquer - seus filhos fundariam um próspera fábrica de móveis na década de 1930; Henrique Mülhauhaus, também alemão, na região central, entre 1894 e 1905; Giuseppe Toguim, atuante entre 1894 e 1907, nas proximidades da esquina da Alameda Glória com Marechal Deodoro; Eliseu Bertoldo, entre 1896 e 1906, provavelmente trabalhou na região do atual Bairro Rudge Ramos (15).
A partir da década de 1910, o número de menções documentais a profissionais atuando como ferreiros na região de São Bernardo do Campo diminuiu sensivelmente (16). Porém, uma preciosa descrição de um espaço dedicado ao ofício sobreviveu em um relato de Armando Mazzo, militante político e operário moveleiro, que, na infância, traballhou como ajudante na ferraria anexa à fábrica de carroças de José Zoboli, na Rua Santa Filomena: “Havia muitas ferramentas: malhos, martelos, tenazes, (...) e bigornas. Havia uma enorme forja alimentada com carvão coque. Na alavanca de madeira colocada na parte de cima havia uma corrente que descia até à altura da pessoa que a acionaria, onde tinha uma argola para ser manuseada. Meu trabalho consistia em puxar manualmente essa corrente, em movimento de vai e vem. Dessa forma era acionada a alavanca que acionava e comprimia o fole, mandando o ar que ativava a queima contínua do carvão. Meu mestre era o ferreiro Aladino Suster. As ferragens e os aros para as rodas e carrocerias eram levadas ao fogo da forja.
Quando vermelhas, em brasa, eram batidas com o malho em cima da bigorna e assim moldadas. Uma vez colocadas (nas rodas ou carrocerias) com longas tenazes e batidas de grandes martelos, se adaptavam perfeitamente. Era um trabalho que exigia técnica e rapidez. As rodas ficavam dispostas no chão da oficina. (...) Uma vez pronta a operação de circundar a roda pela cintura de ferro em brasa, jogávamos água fria, encolhendo o aro de ferro, e a roda ficava firme como uma rocha” (17).

Esq: Pintura de Francisco Goya, denominada “A Forja” , executada por volta de 1817. Nela se retrata o tradicional trabalho de ferreiros junto à uma bigorna. Dir: Guilherme Bellinghausen, antigo ferreiro estabelecido em São Bernardo. 1900 ( c ).
Notas:
(1) - Cf. Bogucki, Peter (Ed.).Encyclopedia of Society and Culture in the Ancient World. Vol.1. Facts on File,United States, 2007. Verbetes: Crafts: Rome, p.293 ; Occupations: p.812-813, 815-816.
(2) - Lemos. Carlos. Notas sobre a cultura material e o cotidiano em São Paulo dos tempos coloniais. In: Porta, Paula (org). História da cidade de São Paulo: a cidade colonial (1554-1822). São Paulo: Paz e Terra, 2004. p.182.
(3) - Cf. Lista nominativa de habitantes de S. Paulo e S. Bernardo – 1779. Acervo: Arquivo do Estado de S. Paulo.
(4) - Cf. Lista nominativa de habitantes de S. Paulo e S. Bernardo – 1813. Acervo: Arquivo do Estado de S. Paulo.
(5) - Cf. Lista nominativa de habitantes de S. Paulo e S. Bernardo – 1822, 1827 e 1829. Acervo: Arquivo do Estado de S. Paulo.
(6) - Cf. Câmara Municipal de São Paulo. Livro de Impostos. São Bernardo. 1882/1883, 1885/1886. Acervo: Arquivo Histórico Municipal Washington Luis.
(7) - Cf. Jornal “ O Estado de São Paulo”, 2//10/1888, p.2.
(8) - Cf. Jornal “Correio Paulistano”, 24/11/1886, p.1.
(9) - Cf. Procuradoria da Câmara Municipal de São Bernardo. Lançamento de Impostos Municipais (1890-1892). Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano Gaiarsa
(10 ) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Indústrias e Profissões. 1904-1909. Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa.
(11) - Cf. Livro de Matrícula dos Colonos – Núcleo Colonial de São Bernardo/Sede. Inspetoria Geral de Terras, Colonização, Imigração do Estado de São Paulo. (1877/1892). Acervo: Arquivo do Estado de São Paulo.
(12) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Arrecadação do Imposto Predial (1892-1899). Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano A. Gaiarsa.
(13) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Procuradoria. Impostos diversos (1900-1903). Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa.
(14) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Procuradoria. Impostos diversos (1893-1899); Câmara Municipal de São Bernardo. Indústrias e Profissões. 1904-1909. Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa.
(15) - Cf. Idem.
(16) - Entre 1911 e 1935, os livros de impostos da prefeitura municipal apontam a presença esporádica dos seguintes ferreiros na cidade: Giuseppe Molon Stéfano Oliveschi, Carlos Wunderlick, Miguel Périgo, Domingos Périgo, Amadeu Bonini & Irmão. Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Impostos de Indústrias e Profissões. 1911-1923 ( Acervo: Centro de Memória de São Bernardo do Campo) e 1924-1935 (Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa).Paolo Lazzuri e seu filho Camilo também exerceram o ofício em São Bernardo, o primeiro a partir da década de 1940 e o segundo até o princípio dos anos 1970.
(17) – Cf. Mazzo, Armando. Memórias de um militante político e sindical no ABC. São Bernardo do Campo: Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo.Coordenação e revisão: Serviço de Documentação da História Local (atual centro de Memória de São Bernardo do Campo. 1991.p. 27 e 28.
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